Qual o limite da sua arte?

O que a condenação de Léo Lins revela sobre nós mesmos?

04/06/2025 às 18h20 Atualizada em 05/06/2025 às 13h57
Por: Rudi Ferreira
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Qual o limite da sua arte?

 

Sou homem, branco, heterossexual, 37 anos, 96 kg, 1,77 m de altura, careca, quase cego e pobre.
O que isso diz sobre mim? E o que isso diz sobre você até chegar no "quase cego e pobre"? No final, eu te respondo.

Vivi nos anos noventa. Gostava de Carrossel (a versão mexicana) e de Cavaleiros do Zodíaco, e essas artes, bem distintas, moldaram meu caráter na infância. Assistir ao Cirilo sofrendo racismo (explícito), ao Jaime passando por gordofobia, e tantos outros sendo insultados por suas características me impressionava a ponto de pensar: “E se um amigo meu negro, gordo, baixo se ofender, como ele vai se sentir?”
Desde então, nunca chamei ninguém por apelidos sem ter intimidade. Mesmo assim, até hoje, meço muito minhas abordagens.
Já com o desenho, aprendi a insistir, a ter um propósito, personalidade, posicionamento e que o mais fraco pode sim vencer o mais forte.

Na adolescência, aprendi com os drogados do rock que eu poderia ser os meus pensamentos, minha liberdade; que as regras que você quebra são as que te fazem ser lembrado.
Aprendi que respeitar mulheres, homossexuais, etnias, credos não é virtude, é dever. Porque cada um é um indivíduo dentro de um coletivo onde curtir o som era o maior propósito.
Com os filmes de comédia como O Balconista, do Kevin Smith, e Debi & Loide, aprendi que o deboche e as risadas eram minhas armas mais poderosas para não enlouquecer nessa vida tão séria de adulto, onde ter tudo não significa nada, e não ter nada pode significar muito.

Fui a dois shows do Léo Lins: um experimental, bem intimista, no Clube do Minhoca, e outro em um teatro.
Certa vez, ele fez uma piada sobre lábio leporino, doença que minha mãe tinha.
Essa piada ficou na minha cabeça e me fez refletir mais sobre mim do que sobre ele.

Sempre tive orgulho da minha véia, sempre quis protegê-la. Sabia das maldades que ela enfrentava em algumas situações. Cheguei até a brigar em um mercado, certa vez.
Mas, após ouvir essa piada, pensei: minha mãe nunca se ofendeu, nunca reclamou, sempre foi forte, viveu no coletivo, sempre teve muitos amigos e deu risada da vida.
Caiu a ficha: o que eu aprendi com o mundo externo, eu já tinha dentro de casa.
Seria eu, então, o preconceituoso que não olhava para ela de forma tão positiva quanto olhava para minhas referências?

Todos, à primeira vista, pré-julgamos uma roupa, um trejeito. E isso não é preconceito?
E quando falei das minhas características lá no início, você pensou o quê?

O problema não é gostar de funk ou de uma piada ácida.
O problema é replicar comportamentos.
É a hipocrisia de se julgar acima do bem e do mal, se intitulando santo.

A função da arte é dar vida ao seu pensamento mais profundo. É fazer auto-reflexão:
"Sou assim?"
"Faço isso?"
"Sou a vítima ou o vilão?"

Quando você ri de uma piada sobre loiras e condena uma sobre deficientes, qual é a diferença?
Já parou pra pensar que isso diz mais sobre você do que sobre a piada?
Afinal, o deficiente é “coitado” e a loira é “gostosa”, por isso está tudo bem?

Eu não tive pai. E sabe por que dou risada desse tipo de piada?
Porque sou bem resolvido com essa questão.
Não foi a ausência de alguém que me moldou até aqui.
Se, pra você, foi, então talvez precise mais de um psicólogo do que de uma desculpa.
Precisa parar de jogar a culpa dos seus atos em terceiros ou na ausência deles.

Já vi um PCD dizendo ao próprio Léo Lins: “Você me incluiu.”
Isso dá direito a humilhar?
Óbvio que não. As piadas passam muito do ponto, é verdade, mas da minha régua.
A escolha é sua: consumir ou não a arte.
O ator, comediante, músico, escritor, todos são instrumentos e reflexos da sua força e fraqueza. 
Infelizmente (ou felizmente), a arte tem a obrigação de incomodar.
E foi assim que aprendi a respeitar, ainda menino.

"Mas eu não tenho direito de fala." Você pensa? Você sente?
Então por que não diz?
Se posicionar é agradar e desagradar ao mesmo tempo. Já ouvir é opcional.
Se não quiser nada disso, tudo bem, mas tenha uma coisa: escolha! 

Censurar ou assistir apenas para julgar é dar o mesmo ibope de quem assiste para se divertir com o que há de mais sádico.
Se quiser combater, não veja. Não compartilhe. Deixe morrer ao menos para você.
Isso já é fazer algo. Isso já é se posicionar.

Piada de mau gosto é projetar no outro as nossas próprias vendas sobre um mundo perfeito que não existe.
Qual é a arte que você tem consumido?
A que te faz pensar ou a que diz: “É o remake que você precisa, não do original”?

Cuidado. Você pode virar a sua própria piada se parar de pensar.
Direito todos temos. Apenas arque com as consequências das suas escolhas.

Léo Lins foi condenado em primeira instância.
E você absolvido, não me julgou lá no começo a ponto de ler meu desabafo até aqui.
Hoje, você fez algo por um homem branco, heterossexual, de estatura mediana, pobre e quase cego.

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